Cursinhos Populares como alternativa para a classe trabalhadora

Tiago Lourenço
4 min readJul 15, 2022

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Ensino superior é o que busca grande parte da juventude trabalhadora após concluir o ensino médio, na esperança de melhorar as condições de vida, se estabilizar em uma carreira ou simplesmente ter acesso a empregos com melhor remuneração. Mas quais são os mecanismos que permitem a entrada nessas instituições? No caso do Brasil são os vestibulares, provas que trazem questões, de forma geral, sobre todo o conteúdo abordado no ensino médio. A dificuldade da prova depende da concorrência, as universidades públicas, como USP, Unicamp, Unesp e Universidades Federais; e os cursos com mais status, como medicina, engenharia e direito, costumam ser mais procurados e, portanto, mais difíceis de entrar devido ao número limitado de vagas.

Olhando esse quadro de maneira superficial, somos levados a pensar que esse critério de seleção serve para abrir caminho aos jovens mais bem preparados e dedicados, que trabalharam duro para conseguir seu lugar ao Sol e estão agora dando seus primeiros passos. Porém, isso é o que chamamos de ideologia da meritocracia, pois basta olhar com mais atenção: se levarmos em consideração a extrema desigualdade social que divide o Brasil e que se reflete na educação do povo que fazem uso da rede pública — com escolas sem infraestrutura, funcionários mal remunerados e que, no governo fascista de Bolsonaro, sofreu profundos cortes no orçamento, como os R$ 3,2 bilhões a menos no MEC, em 2022 –, e se lembrarmos que em muitas das famílias brasileiras os jovens precisam trabalhar desde muito cedo, em casa ou fora, para ajudar com contas, com aluguel, com mercado, e assim, dividir o tempo de estudo com o tempo laboral, vamos descobrir que os vestibulares têm a função de filtro social, permitindo a entrada dos filhos das classes médias e altas — que tem tempo e condições materiais para se dedicar aos estudos e que podem pagar cursinhos pré-vestibulares, que costumam custar mais de um salário mínimo –, e barrando a juventude trabalhadora. Consequência: os mais pobres não têm condições de acessar uma universidade pública (o que deveria ser um direito) e são empurrados para universidades particulares, muitas de péssima qualidade e que dão mais dívidas do que diplomas.

Vemos que o vestibular, apoiado no discurso meritocrático, ocupa um lugar importante na luta de classes no Brasil, intensificando a desigualdade ao mesmo tempo em que enriquece as indústrias de cursinhos pré-vestibulares e de universidades particulares — por exemplo, a Cogna, antiga Kroton, é o maior grupo educacional do mundo, tendo a propriedade de universidades como Anhanguera, FAMA, Unopar, Unic, entre outras, ou seja, o maior complexo educacional do mundo está no país em que apenas 21% dos jovens entre 25 e 34 anos possuem ensino superior completo. Uma análise de 2019 da revista GaúchaZH constatou que praticamente 90% da nota do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) é determinada pelas condições econômicas, sociais e familiares dos candidatos, fatores como renda familiar mensal, computador em casa e ter frequentado escola pública figuram entre os maiores pesos para determinação do desempenho. Outra pesquisa, no mesmo ano, do jornal Estadão, mostra que enquanto 1 a cada 4 alunos da classe média consegue uma vaga numa universidade, apenas 1 a cada 600 alunos pobres chegam lá. Em resumo, o vestibular é um mecanismo de manutenção da desigualdade social e de enriquecimento das elites proprietárias das indústrias da educação.

Destas contradições nascem os Cursinhos Populares, Movimentos Sociais de Educação Popular, que se colocam como alternativas para alunas e alunos de baixa renda, como meio para se prepararem para os vestibulares. A maioria dos Cursinhos Populares são gratuitos, construídos por militantes e voluntários, e funcionam em espaços “emprestados”, geralmente de escolas ou universidades públicas. No Cursinho Popular Laudelina de Campos, as aulas acontecem aos sábados, numa escola estadual no Ipiranga, bairro da zona sul de São Paulo, desde 2010, e recebem cerca de 200 estudantes por ano. Já o Cursinho Popular Carolina de Jesus, que funciona no Capão Redondo, também em uma escola da rede pública, aos sábados, recebe cerca de 800 estudantes por ano. Há, ainda, vários desses cursinhos espalhados por diversas cidades, com algumas características próprias, adaptadas às condições da região onde atuam, mas com um mesmo centro de gravidade: a luta pela democratização da educação e o fim do sistema capitalista, que torna o conhecimento uma mercadoria, gerando todas as mazelas que acabamos de ver. A partir dessas raízes, os Cursinhos trabalham no tensionamento entre ensinar o conteúdo formal exigido nos exames vestibulares e o ensino crítico, em diálogo com a vida das alunas e alunos, e com a sociedade; permitindo que se entendam enquanto sujeitos políticos e rompendo com a lógica de mercantilização do saber. Inspirados nos ensinamentos de Paulo Freire, paralelamente às aulas de resoluções de exercícios, redação, matemática, química, etc, os Cursinhos Populares promovem círculos de debates sobre questões políticas e sociais, como machismo, cotas raciais, exploração animal, crise climática, entre outras. Nesses espaços, os estudantes encontram uma relação diferente com a construção do conhecimento, desde compreender que a sua vivência e compreensão do mundo também constituem saberes legítimos; de se sentir livre para falar, opinar e questionar; até a construção do próprio Movimento, participando de plenárias, propondo atividades, etc.

Assim, os Cursinhos Populares são focos de resistência, atuando na luta contra a hegemonia do sistema capitalista, nas trincheiras da Educação Popular, contra a transformação da Educação em mercadoria (acessível apenas aos mais ricos) e em reprodutora de consenso (reforçando a ideologia burguesa que permite a manutenção desse sistema de crueldade). Esses movimentos são fundamentais para apoiar o projeto político de uma sociedade mais justa e mais bonita para todas e todos, e representam, muitas vezes, a única alternativa viável para os filhos do nosso povo vencerem a difícil barreira dos vestibulares.

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