Meritocracia e Probabilidade

Tiago Lourenço
12 min readDec 26, 2020

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A meritocracia é uma forma de justificar a distribuição de recursos baseada na ideia de que somente o esforço individual é responsável pelas conquistas ou vantagens de cada pessoa. Nessa perspectiva, passar em uma prova, chegar à uma posição relevante na empresa ou até conseguir um bom emprego são méritos exclusivamente do indivíduo e não das condições materiais em que ele se encontra. É comum ouvir a analogia com uma corrida, onde todos os participantes começam da mesma linha, tiveram o mesmo tempo para treinar e para descansar e as mesmas condições de clima, infraestrutura, etc.

Vamos tomar um exemplo concreto, o vestibular - o qual vamos olhar com mais calma a frente. Do ponto de vista meritocrático, passar no vestibular se reduz à quanto o estudante realmente se esforçou para aprender todo o conteúdo formal exigido pela prova, o que significa ficar mais tempo sentado lendo livros de teoria e fazendo exercícios, assistir aulas do cursinho pré-vestibular, ir à escola, tirar dúvidas com as professoras, enfim, todas as atividades necessárias para um aprendizado sólido.

Aqui começamos a esbarrar em problemas, o discurso meritocrático parte da premissa de que todos começam com as mesmas condições, o que é impossível no Brasil - em março de 2019, estávamos com 0,533 no índice de Gini, que mede a desigualdade de um país numa escala de 0 a 1 (quanto mais próximo de 1, mais desigual), o que o coloca entre os 10 países mais desiguais, de modo que submeter todos os estudantes, sem considerar as suas diferenças sociais e econômicas enormes, à mesma prova é absolutamente injusto. Mais que isso, é fazer uma peneira socioeconômica a fim de filtrar as camadas mais pobres, permitindo o acesso à universidade pública à camada mais abastada.

Nem todo mundo, na verdade muitos poucos, tem o luxo de passar o dia se dedicando a aprender, de não precisar ajudar a família, seja trabalhando fora ou cuidando da casa, de ter acesso aos materiais teóricos e práticos necessários para estudar, de poder pagar um cursinho pré-vestibular maldosamente caro, a educação de base de qualidade ou a vários outros fatores necessários a um processo de construção e assimilação de conhecimento. Vemos então como é superficial, e perigoso, atribuir toda a responsabilidade as ações do individuo sem olhar para o seu contexto.

Se pensarmos, ainda, no conceito de ideologia em Marx, que diz que os sistemas de crenças da sociedade são, na verdade, os sistemas de crenças das classes dominantes, ou em outras palavras, os interesses do proletariado - nós - são apagados e substituídos pelos interesses da burguesia, todo esse problema faz mais sentido. Os processos mentais que se propõem a alienar a classe trabalhadora das suas condições sociais, como a meritocracia, são mecanismos de manutenção do poder e naturalização das relações de exploração. Quando toda a responsabilidade é atribuída ao individual, esquecemos que não somos invariantes históricos e sociais, nós somos profundamente influenciados por uma estrutura, e manter essa estrutura em pé é o papel dessa ideologia. Além disso promove uma tendência individualista, isolando o individuo do coletivo, de maneira que a mudança almejada não é para todos, é apenas para os que se esforçam de verdade, precisamente para que o sistema se mantenha intacto.

De fato, essa lógica toda é contraditória quando pensamos num trabalhador que acorda as seis horas da manha todos os dias e gasta três horas de transporte público, chega em casa, na periferia, as oito horas da noite e recomeça tudo de novo no outro dia e não consegue sair jamais dessa condição. E o que é mais cruel, defende com unhas e dentes interesses que não são seus, que o esforço garante o sucesso, ele não deve se unir a outros trabalhadores e lutar por uma sociedade mais justa, mas sim se manter no sistema.

Proponho então pensarmos nessa questão a partir de uma abordagem diferente, lançando mão de alguns conceitos de probabilidade. Uma das maneiras de se interpretar probabilidades é chamada bayesiana (a que costumamos ver na escola, mais clássica, é uma tradição conhecida por frequentista) em referência ao matemático inglês Thomas Bayes (1702-1761), na qual as entendemos como um grau de crença que atribuímos as chances que um certo evento tem de ocorrer, como por exemplo os 50% de chance que acreditamos que vai cair cara ou coroa ao lançar uma moeda. Nessa perspectiva, relacionada à Teoria da Informação, usamos o conceito de probabilidade condicional - a rigor todas as probabilidades são condicionais, mas ignoramos esses detalhes por simplicidade, certos condicionantes são autoevidentes. Mas o que isso quer dizer? Quer dizer que a crença que atribuímos a chance de algo acontecer sempre vai depender das condições as quais o evento está submetido e as informações que temos sobre essas condições, isto é, seu contexto, quanto mais sabemos sobre um sistema, mais refinada se torna uma probabilidade e mais próximo da certeza estamos. Por exemplo, ao lançar um dado é sabido que a probabilidade, sem nenhuma informação adicional, de se obter o número 1 é de 1/6 ou 16.6%. Mas e se descobrirmos que o lado oposto ao 1 é mais pesado? De modo que o dado tem uma tendência maior em cair com o número 1 voltado para cima. Nesse caso a probabilidade se reconfigura e passa a ser, digamos 30%. É mais provável que caia 1 do que os outros lados, igualmente é menos provável que caia o lado oposto ao 1. Usamos este exemplo para mostrar a importância que a informação sobre o contexto em que o sistema está inserido tem. As condições externas e internas moldam as probabilidades relacionadas aos eventos.

Vamos tomar outro exemplo para introduzir uma notação matemática. Qual seria a probabilidade de, ao sair pelo portão de casa, encontrar com a Angela Davis? (Se você não sabe quem ela é, pesquise agora!) A sua resposta provavelmente é: zero. E é muito razoável pensar isso! Estamos assumindo a priori que estou falando de mim, neste momento, e de fato as chances disso acontecer são praticamente inexistentes, infelizmente. Mas agora vamos adicionar um condicionante. Qual é a probabilidade de, ao sair pelo portão de casa, encontrar a Angela Davis, dado que eu sou seu vizinho? Agora as chances aumentaram consideravelmente!

Vamos reescrever o trecho acima em termos matemáticos, tomemos as proposições:

A = ”Encontrar a Angela Davis”
B = “Sou vizinho da Angela Davis”

Temos que P(A) é a probabilidade de ocorrer o evento A e P(A|B) é a probabilidade de ocorrer o evento A dado que B é verdadeiro. Toda a discussão anterior pode ser codificada na expressão: P(A|B) > P(A). Quer dizer, podemos usar probabilidade para descrever, em linguagem simbólica matemática, as linhas de raciocínio relacionadas à crenças do acontecimento de certos eventos! Probabilidade é uma área incrível da matemática que se adapta a quase todas as teorias.

Agora podemos entrar no ponto central dessa discussão, o acesso à universidade pública. Os meios de acesso, no Brasil, são sempre os mesmos: os vestibulares. São provas sobre conteúdos que cobrem todo o ensino básico. Submetemos todos os jovens as mesmas provas para testar sua aptidão em ingressar no ensino superior, acompanhar as aulas, ser um cidadão intelectualmente ativo e produtivo. Quanto mais renome a instituição, mais concorrida e, claro, mais difícil é a prova.

O problema: Ao avaliar todos através mesmo método, ignoramos todas as informações adicionais que vão contribuir nas chances de sucesso desse processo. Segundo o IBGE, em 2016, cerca de 70% do total de estudantes estava matriculado na rede pública. Em média, estudantes da rede pública possuem uma grande defasagem com relação a estudantes da rede privada. Mais ainda, uma enorme parcela dos jovens termina o ensino médio numa situação de conhecimento insuficiente em matérias fundamentais como português e matemática. É razoável, portanto, supor que a condição de estudar em um colégio público diminui, em alguma medida, as chances de ir melhor num vestibular do que iria se sua formação fosse a de um colégio particular. E ainda é possível pensar em mais condições em que os jovens de certos grupos estão tipicamente submetidos, como trabalhar pra ajudar em casa, se deslocar grandes distâncias para ir a escola, ter condições de pagar um cursinho pré-vestibular, ter um espaço adequado para estudar, não precisar ajudar a família em casa, etc. É possível tomar mais uma centena de aspectos sociais, geográficos e econômicos que podem configurar a probilidade de um certo grupo de estudantes ir bem no vestibular.

Vamos considerar a seguinte situação, dois jovens, típicos das suas classes sociais e faixas de renda, um reside num bairro nobre, filho único, com os pais casados entre si, colégio particular, com uma renda relativamente alta. O outro, periférico, com duas irmãs e cuja mãe é a chefe da família, e única fonte de sustento, tendo que trabalhar o dia todo fora. Note que esses dois perfis contemplam uma parcela enorme da população de modo que estamos considerando uma situação bastante comum.

Agora tomemos as seguintes proposições

A = “Passar no vestibular”
B = “Estudei”
C = “Estudei muito mesmo!”
D = “Frequentei um colégio particular”
E = “Frequentei um colégio público”
F = “Moro na periferia”
G = “Faço cursinho pré-vestibular”
H = “Trabalho para ajudar nas despesas”
I = “Ajudo nas tarefas de casa”

Essas são apenas algumas das condições relacionadas a esses grupos, mas já são o suficiente para o raciocínio que faremos. Vamos considerar aqui que um asterisco acima da letra referente a proposição é a sua negação, por exemplo, B* = "Não estudei".

Vemos então que algumas relações são muito naturais, como

P(A|C) > P(A|B) > P(A|B*)

Isto é, a probabilidade do jovem passar no vestibular dado que estudou muito mesmo é maior que a probabilidade de passar dado que estudou e que, por sua vez, é maior que a probabilidade de passar dado que não estudou.

Até aqui tudo bem, essa relação é muito razoável. Mas é exatamente a partir daqui que a meritocracia falha, porque ela pára nessa desigualdade, esquece todos os condicionantes que mencionamos e torna esse resultado um senso comum. Esse modelo simplificado que leva em consideração somente o esforço individual não pensa que, cada um desses sujeitos está inserido em um contexto que vai alterar essas probabilidades. A lógica cruel que o discurso meritocrático propõem nos leva a falsa igualdade:

P(A|C,D,F*,G,H*,I*) = P(A|C,E,F,G*, H, I)

Ou seja, a acreditar que pessoas partindo de situações totalmente diferentes (colégio particular, cursinho pré-vestibular, morar nas proximidades do centro, tempo livre para estudar contra colégio público, periférico, precisa ajudar em casa e/ou trabalhar fora pra ajudar nas despesas) dependem da mesma quantidade de esforço para um sucesso!

O que não é e nunca será verdade. Tempo, material, descanso, espaço, despreocupação com questões da casa, suporte, preparo do cursinho, educação de base, são todos fatores importantíssimos que contribuem para se preparar para uma prova. O que realmente temos, é uma relação do tipo

P(A|C,D,F*,G,H*,I*) > P(A|C,E,F,G*, H, I)

ou em muitos casos, do tipo

P(A|B,D,F*,G,H*,I*) > P(A|C,E,F,G*, H, I)

O que quer dizer que as condições materiais são condicionantes que quase sempre determinam o resultado final dos processos. Jovens em situações diferentes, quase opostas, tem que estudar em condições totalmente diferentes, com maneiras de se preparar diferentes. Muitas vezes um estudante de baixa renda, periférico, não vê mais expectativa de acessar uma universidade pública pois está exausto de tanto trabalhar e estudar, de ter prestado vestibular duas, três vezes e não conseguido e ainda por cima ouvir de uma classe reacionária que ele é o próprio responsável pela falha, não levando em conta as linhas de partida e, inclusive, de toda a trajetória.

A meritocracia é um modelo simplificado e cruel de entender o mundo, que mascára problemas mais profundos, como a desigualdade, o racismo, o machismo, a LGBTQfobia. Ela é cega ao peso que certas condições exercem sobre minorias. Estes condicionantes que usamos são as traduções matemáticas dessas condições sociais, e possibilita ver com mais facilidade as contradições dessa ideologia, contradições que são intrínsecas a um sistema que desumaniza e transforma tudo em mercadoria. Neste caso, consideramos dois exemplos típicos de jovens, em dois grupos distintos, na situação de disputa pelas vagas das universidades, mas a mesma lógica se estende a várias outras esferas da vida em que precisamos disputar algo.

Ignorar os condicionantes é gravíssimo por vários motivos, como apagar o problema da desigualdade extrema em que vivemos devido aos modos de produção capitalistas e fazer com que uma parcela da população considere políticas de reparação uma esmola, um “racismo contra os próprios negros”, como costumam dizer, quando não são! Ninguém está questionando a capacidade de uma pessoa negra, mas num país com uma tradição escravocrata onde a estrutura social foi construída de maneira que raça e classe são essencialmente a mesma coisa, é evidente a necessidade de ações afirmativas para reparar os abismos entre esses grupos.

É comum ouvirmos como argumentos de defensores do discurso meritocrático exemplos de um amigo negro que fez medicina, ou uma mulher que é diretora da empresa, ou o amigo periférico que se esforçou muito e entrou pra uma universidade federal. É preciso tomar muito cuidado com essas falácias - e de novo fazendo uso de ideias de probabilidade e estatística - o espaço amostral de cada um é diferente, isto é, o conjunto de pessoas familiares a alguém não é o mesmo para outro alguém, mais do que isso, esse espaço não dá informação nenhuma sobre a população brasileira como um todo, com mais de 200 milhões de habitantes. Então conhecer três amigos negros em posições privilegiadas nem de longe representa a realidade da maior parta da população negra, das mulheres, da comunidade LGBT ou das comunidades indígenas.

Para entender essa realidade, e corroborar o nosso ponto, é preciso olhar para dados concretos. Por exemplo, de acordo com a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), realizado pelo IBGE em 2016, a taxa de analfabetismo é mais que o dobro entre pretos e pardos (9,9%) do que entre brancos (4,2%). Já no ensino superior, em 2017, a porcentagem de brancos com 25 anos ou mais que tem ensino superior completo é de 22,9% enquanto a de pretos e pardos com diploma: 9,3%, o que mostra a relação profunda entre raça e desigualdade no Brasil. A revista GaúchaZH realizou uma análise, em 2019, das edições mais recentes do Enem e constatou que praticamente 90% da nota é determinada pelas condições econômicas, sociais e familiares dos candidatos, fatores como renda familiar mensal, computador em casa e ter frequentado escola publica figuram entre os maiores pesos para determinação do desempenho, este é o peso dos condicionantes que estavamos falando. E se olharmos ainda para outra pesquisa, no mesmo ano, do jornal Estadão, temos resultados ainda mais dramáticos, de acordo com o levantamento, enquanto 1 a cada 4 alunos da classe média consegue uma vaga numa universidade, apenas 1 a cada 600 alunos pobres chegam lá. Se usarmos essas frequências para obter um valor de probabilidade, como na tradição frequentista que comentamos antes, estudantes da classe média tem 25% de chance enquanto um aluno pobre possui cerca de 0,16%.

No caso particular do Brasil, o vestibular, amparado pelo discurso meritocrático, ocupa um lugar importante na luta de classes, ao mesmo tempo em que filtra os filhos da elite também impulsiona dois mercados, o dos cursinhos pré-vestibular e o das universidades privadas, encaixando perfeitamente os ricos nas primeiras — facilitando, portanto, o acesso as universidades públicas e às bolsas de estudo — e os pobres nas segundas — sem bolsas, as vezes com bolsas que ainda sim representam um grande custo ou com medidas como o FIES que promovem mais endividamentos do que diplomas. Resultado: a Cogna (antiga Kroton) é a maior empresa de ensino superior do mundo no país onde 20 % dos habitantes possuem ensino superior, uma das piores taxas do mundo. Não é preciso dizer o quanto esse processo acentua a desigualdade e reforça a dominação das classes dominantes.

Entender o funcionamento do mundo, a luta de classes, os processos históricos e sociais e o papel das condições materiais na formação das sociedades, os mecânismos de manutenção da dominação como a ideologia burguesa, a fragmentação do conhecimento, a alinenação, entre outros, ajudam a entender por que as coisas são dessa maneira e, mais importante, buscar e trilhar os caminhos que nos levam à superação desse sistema. Por fim, é sempre bom evocar Paulo Freire:

“Penso, por exemplo, que a ideologia dominante 'vive' dentro de nós e também controla a sociedade fora de nós. Se essa dominação interna e externa fosse completa, definitiva, nunca poderíamos pensar na transformação social. Mas a transformação é possível porque a consciência não é um espelho da realidade, simples reflexo, mas é reflexiva e refletora da realidade. Enquanto seres humanos conscientes, podemos descobrir como somos condicionados pela ideologia dominante. Podemos distanciar-nos da nossa época. Podemos aprender, portanto, como nos libertar através da luta política na sociedade. Podemos lutar para ser livres, precisamente porque sabemos que não somos livres! É por isso que podemos pensar na transformação." Paulo Freire (Medo e Ousadia, 1986, pag. 25)

É necessário reforçar que sempre há esperança, apesar de condicionantes, esses fatores não são determinantes, e nem são únicos. Há várias outras condições que podemos acrescentar à realidade de estudantes que precisam enfrentar as dificuldades da vida além do vestibular, como as cotas, cursinhos populares, educadores populares - que lutam pela democratização da educação junto as alunas e alunos e entendem a importância desse suporte, apoio dos familiares e amigos, grupos de estudos, materiais na internet, textos educacionais, video-aulas, e mais um sem fim de medidas alternativas que podemos tomar individualmente mas, principalmente, com o coletivo para melhorar esse quadro. Pois apesar de o mundo nos botar condicionantes pra nos deixar na posição de subalternos, nós criamos, juntos, nossas próprias condições de subversão para a transformação da realidade.

PDF do texto aqui: Meritocracia e Probabilidade

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