Trabalho, Energia e Capitalismo

Tiago Lourenço
5 min readFeb 12, 2021

--

Introdução de um material que escrevi para as alunas e alunos do Cursinho Popular Laudelina sobre Trabalho e Energia, se trata de uma reflexão breve sobre o desenvolvimento do conceito de energia, mas com o objetivo principal de entender as suas relações com a sociedade. E mais que isso, dar uma pista, sem muito aprofundamento, sobre a relação entre a própria produção cientitica e tecnológica e a sociedade capitalista.

Entender o que é energia sempre foi uma tarefa difícil, desde Aristóteles até Stephen Hawking, o que observamos é que essa ideia frequentemente está associada à transformação, a todo momento estamos cercados por fenômenos que estão em constante mudança, mudança de movimento, mudança de estado, mudança de características físicas, etc. Com o tempo algumas pessoas (como Galileu, Descartes e Leibniz) perceberam que a melhor maneira de compreender essa dinâmica de mutação era lançando um olhar mais atencioso sobre o que permanece constante, talvez numa tentativa de buscar ordem no caos (Coisa semelhante aconteceu com Einstein quando desenvolveu sua teoria da relatividade, que apesar de levar esse nome se refere a compreender aquilo que é absoluto nas leis físicas e não aquilo que é relativo, Einstein nunca disse aquela frase que frequentemente atribuem a ele sobre tudo ser relativo). Do amadurecimento dessa ideia, em conjunto de uma melhor compreensão de outros fenômenos naturais, chegamos no que hoje se entende por leis de conservação.

Além disso, grande parte do desenvolvimento e da formalização matemática da energia, trabalho e conservação que conhecemos se deu na Revolução Industrial, iniciada no século XVIII, na Inglaterra. As máquinas a vapor precisavam de uma teoria que as explicasse com o objetivo principal de potencializar seu rendimento, o que podemos traduzir aqui como maximizar o lucro dos donos das fábricas, dando início à termodinâmica. Dois conceitos físicos centrais nesse processo são: o trabalho (desenvolvido por Carnot, Navier, Coriolis, Poncelet e outros), que amarra os fenômenos energéticos ao conceito de força, e a conversão, como o movimento dos elétrons que podiam gerar algumas reações químicas, bem como a luz e o calor (E em particular a invenção da bateria por Alessandro Volta, em 1800, que contribuiu para a compreensão da relação mútua entre os processos de conversão), e que já eram conhecidas na época.

Esta página da história foi decisiva para a compreensão da conservação de energia e do trabalho, mas mais do que os fenômenos em si eu gostaria de propor um breve olhar sobre o contexto desse desenvolvimento e quais foram as suas implicações. Paralelamente ao inicio da utilização das máquinas nas fábricas e ao desenvolvimento da industria inglesa ocorria o processo de expansão do capitalismo europeu através da colonização de outros países. Em particular, sobre a América Latina, podemos pensar na expropriação sem precendentes da sua riqueza, a destruição das suas terras e o trabalho compulsório de seus povos originários. É didático citar um trecho de As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano: O capital acumulado no comércio triangular — manufaturas, escravos, açucar — tornou possível a invenção da máquina a vapor (pag. 121), se referindo às relações comerciais entre a Europa, África e suas colônias na América, e cujo principal elemento era o tráfico negreiro. Isto é, o desenvolvimento de certos países, aqueles que estão no centro do capitalismo global, depende do subdesenvolvimento de outros países, aqueles que estão na periferia. As riquezas extraídas das colônias a fogo e sangue foram o que permitiu investimentos nas fábricas da Inglaterra e, em grande medida, incentivou os estudos e o desenvolvimento teórico dos conceitos físicos de trabalho, energia e conservação.

Trago essa reflexão para não perdermos de vista que a produção cientifica não é neutra, não paira sobre os conflitos da sociedade como se nada tivesse a ver com isso. Estudos sobre máguinas a vapor, energia, energia nuclear, vacinas e n outros exemplos, são facilitados ou não graças aos interesses que surgem das relações de dominação na sociedade, na verdade na maioria das vezes das próprias classes dominantes. Se há investimento e incentivo para a consolidação e evolução de uma certa área do conhecimento é porque beneficiará aqueles que estão no poder. Podemos tomar o exemplo das máquinas a vapor novamente, o seu desenvolvimento servia como forma a diminuir o uso da força de trabalho nas fábricas, já que poucas pessoas (que poderiam ser inclusive crianças, e não raramente eram) são suficientes para manuseá-las de modo a produzir a mesma quantidade de mercadorias, maximizando a capacidade de extração da mais-valia — a parcela da riqueza produzida pelo operário que é expropriada pelo patrão — e, portanto, aumentando a riqueza do dono da fábrica. Em contrapartida, algumas das consequências para a classe operária foi um aumento do desemprego (que é característica intrínseca do capitalismo), a inserção de toda a familia nas entranhas do capital, já que agora não é mais preciso força bruta paras as atividades fabrís, e uma demanda por mão de obra especializada, para regular ou mesmo consertar as máquinas que se danificavam. Quer dizer, dentro da lógica de acumulação capitalista, algo que poderia representar um fator de emancipação humana, dando mais tempo aos trabalhadores e trabalhadoras para se dedicarem a si mesmos, representa formas cada vez mais sofisticadas de exploração e dominação.

Se a ciência em si é independente da humanidade ou não (isso é discussão pra outro momento), ao menos seu desenvolvimento caminha em direções ditadas, principalmente, pelos modos de produção e reprodução da vida e pelos interesses das classes dominantes, e o sentido oposto também pode ocorrer, quando a ciência afeta as relações sociais e os rumos da sociedade, existe uma relação complexa, mútua, entre essas esferas. O que não podemos é ter a ingenuidade de alocar a produção cientifica em uma posição apolítica e, pior que isso, sustentar a ideia de uma sociedade tecnocrata. Tudo é político, inclusive a suposta neutralidade, que não passa de interesse burguês camuflado pela ideologia dominante. Precisamos aprender com criticidade e historicidade, pra poder ler melhor o mundo e, mais importante que isso, lutar para transformá-lo.

Bibliografia

[1] GOMES, L. C.. A história da evolução do conceito físico de energia como subsídio para o seu ensino e aprendizagem — parte I. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 32, n. 2, p. 407–441, a go. 2015.

[2] GOMES, L. C.. A história da evolução do conceito físico de energia como subsídio para o seu ensino e aprendizagem — parte II. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 32, n. 3, p. 738–768, dez. 2015.

[3] LIMA JUNIOR, Paulo et al . Marx como referencial para análise de relações entre ciência, tecnologia e sociedade. Ciênc. educ. (Bauru), Bauru , v. 20, n. 1, p. 175–194, Mar. 2014 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-73132014000100011&lng=en&nrm=iso>. access on 12 Feb. 2021. https://doi.org/10.1590/1516-731320140010011.

[4] GALEANO, E. As veias abertas da América Latina. Tradução de Sergio Faraco. Porto Alegre, RS: L&PM, 2019. 400p. (Coleção L&PM POCKET; v. 900).

PDF do material aqui: Energia

--

--